O voo foi tranquilo e, sem nenhum percalço, cheguei à Varna, na Bulgária, terra natal da minha amada Rayka.
Quase dois meses haviam se passado desde o fatídico acontecimento que a afastou de mim para sempre e desde então eu agia no piloto automático, sem saber exatamente o que fazia ou qual meu propósito.
Restou somente o vazio.
No dia anterior decidi ir até aquela casa, onde por duas vezes Rayka e eu estivemos, numa das ocasiões por mais de uma semana, onde ela crescera com sua mãe, Helya.
Não foi difícil encontrar o endereço, o taxista sabia exatamente onde ficava a casa de Rayka Porvoon, a famosa top model.
- Todos nós ficamos profundamente chateados com o que aconteceu.
- Acredito que sim. – eu não estava muito propício à conversas.
- O senhor não deve ser parente, as pessoas dizem que ela não tinha ninguém.
- Tinha a mim.
Ele me olhou pelo retrovisor.
- O senhor era namorado dela?
- Isso faz alguma diferença?
- Não, não, me perdoe. O assunto deve ser bastante desagradável, me perdoe.
O olhei através do retrovisor com cara de poucos amigos e ele finalmente se calou.
Assim que o carro estacionou no endereço um nó na garganta me sufocou.
- Mais uma vez, me perdoe, só queria ser simpático. – o motorista se despediu ao receber o valor da corrida, mas eu nada respondi.
Não sei dizer o que procurava, talvez uma forma de novamente me sentir perto de Rayka, mas lá estava eu em frente àquela casa imerso em lembranças ao mesmo tempo felizes e dolorosas.
Me debrucei no muro, há alguns meses estivemos ali...
- Boa tarde senhor, me recordo de você. – uma amigável voz me trouxe à realidade, era um dos vizinhos, visivelmente abatido.
- Boa tarde, também me recordo de ti. Olavo, acertei? – um rosto familiar, enfim.
- Sim, sim, o senhor tem boa memória. Infelizmente não me recordo do teu nome.
- Erik, meu nome é Erik, e por favor, não precisa me chamar de senhor. – o vizinho devia ter quase setenta anos.
- Perdão, é o costume.
Alguns minutos de silêncio se seguiram, onde ambos ficamos observando a casa.
- Foi muito triste o que houve... – ele lamentou, com a voz embargada.
- Não imagina o quanto... – concordei no mesmo tom.
- Talvez o senhor queira entrar, ver alguma coisa, creio que não haja nenhum problema nisso. Em breve o governo tomará conta da casa e tudo se perderá, ela não tinha parentes.
- Isso é uma pena.
- Sim, é mesmo. Venha, vou pegar as chaves, venha comigo.
Não sabia ainda o que faria lá dentro, o acompanhei até a casa ao lado e logo já tínhamos retornado.
- Fique à vontade Erik, não tenha pressa, me avise quando for embora, para eu fechar de novo. – o simpático senhor abriu a porta.
- Agradeço, fique tranquilo, não pretendo me demorar.
- Sem problema, o senhor parece ser um bom homem. Fazia Rayka sorrir, percebi o quanto eram felizes juntos, o senhor fazia bem à menina.
- E ela a mim, muito. – uma lágrima teimou em escorrer.
Recebi um amigável tapa no ombro, para então ficar sozinho.
Fechei os olhos, os apertei, tentando conter a emoção que me invadia, e só após suspirar fundo dei os primeiros passos para dentro.
Móveis antigos, feitos de madeira maciça, escura, época em que as coisas eram feitas para durar, decoravam o ambiente.
Admirava cada detalhe, o sofá onde ela provavelmente muitas vezes se sentou... parecia ter sido ontem que eu e Rayka ríamos e brincávamos naquela mesma sala e que ela, a qualquer momento, apareceria com seu sorriso inigualável.
Mas isso não aconteceria, Rayka havia partido, para sempre.
Subi até o primeiro andar, onde ficava seu quarto e ver suas fotografias acabou por vencer minha relutância em chorar.
Sentei-me na cama, a mesma onde dormimos juntos por várias noites, e com seu retrato nas mãos tentei pôr para fora toda a saudade que sentia.
Fiquei ali, chorando e acariciando o retrato, como se pudesse mais uma vez tocar seu rosto.
- Tivemos muitos momentos maravilhosos juntos, meu amor, e isso nada vai apagar... – murmurei, como se ela pudesse me ouvir.
Olhei então para o lado e vi um móvel que me chamou a atenção, coberto por um tipo de manta, aproxime-me dele e descobri tratar-se de um baú.
Grande, repleto de ornamentos, era um belo móvel e seria realmente uma pena o governo ficar não somente com ele, mas com tudo o que havia na casa.
Percebi que um grande cadeado o trancava e achei aquilo estranho, afinal, o que poderia ter dentro dele?
Afastei-me e, com dois pisões, acabei pondo fim ao problema do cadeado.
Assim que abri o baú me deparei com várias peças muito bonitas e que pareciam bem antigas, mas o que chamou mesmo a minha atenção foi um grande embrulho, aparentemente escondido debaixo daquilo tudo.
Retirei as bugigangas e logo já o tinha nas mãos. Era longo e fino, como uma espada, estava envolto em tecido e com um estranho selo gravado, o que estranhamente me remeteu à tempos muito antigos.
Voltei à cama, dispus o embrulho sobre ela e descobri tratar-se de um pergaminho muito, muito antigo.
- Mas o que é isso? – perguntei-me, sem entender como Rayka podia ter algo daquele tipo.
Assim que o desenrolei vi no cabeçalho um brasão que não me era estranho, embora tenha sido impossível identifica-lo de imediato, porém minha surpresa se agigantou ao ler as primeiras linhas: ele estava escrito em sueco antigo, a mesma língua que era falada na Casa Wallar.
Como Rayka poderia entender o que estava escrito nele? Uma modelo se interessaria em estudar uma língua tão antiga como aquela? Por quê?
Mas essas perguntas mostraram-se insignificantes diante do que vim a descobrir ao prosseguir por suas linhas.
Lembranças há muito adormecidas vieram à tona pois o pergaminho falava de uma antiga ordem de sacerdotisas dedicada ao deus Alfadur, cujo templo, nas montanhas centrais suecas, estava fadado ao iminente desaparecimento.
- O Templo das Sacerdotisas, recordo-me dele, estive lá certa vez, com meus irmãos imortais, para um ritual... Essa história toda, seu desaparecimento, lembro-me disso, nunca mais ouviu-se falar daquelas sacerdotisas... – fiz uma pausa na leitura com a mente repleta de lembranças há muito trancafiadas em um longínquo passado – Mas como Rayka pode ter alguma coisa a ver com isso tudo? Como alguém sabe dessa história toda? O que isso tá fazendo aqui? Que merda é essa?
Fui tomado mais uma vez por aquele pressentimento que me avisava de que algo horrível estava por acontecer, mas mesmo sabendo que o certo era obedecê-lo teimei em prosseguir com a leitura.
O pergaminho falava de muitas coisas, era extenso, até que chegou o trecho que fez com que eu saltasse da cama e me jogasse no chão, desesperado.
Entre lágrimas e gritos vi tudo rodar, meu estômago revirou e vomitei como nunca fizera antes, nem após a pior de minhas bebedeiras.
“Helya, és responsável por dar continuidade à Ordem, zele pelo fruto de teu ventre, a menina imortal, originada no nosso ritual mais sagrado e secreto. Ela, com sua beleza e brilho naturais, será a responsável por um dia trazer luz à um mundo obscuro, imerso em sombras.”
Ergui os olhos até que alcancei o retrato de Rayka sobre o móvel, ao lado da cama.
- Rayka, você era minha filha...
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