Novamente o sol despontava no horizonte e eu, sozinho, pela imensa janela do meu apartamento, vislumbrava o nascer do dia.
Eu gostava daquilo.
Mas era apenas um novo dia, como qualquer outro, após uma missão executada com perfeição na última madrugada, em uma cidade vizinha.
Meses já haviam se passado desde que eu retornara de Varna, trazendo comigo não somente aquele pergaminho, mas principalmente a dor e a confusão que ele me trouxe.
Segundo ele Rayka era minha filha, ou de algum dos meus irmãos que participaram daquele ritual, não importava, de qualquer forma nosso relacionamento amoroso era uma afronta a tudo aquilo em que acredito e defendo, e essa ideia me consumia.
Sim, tudo indicava que essa era a verdade, uma dolorosa verdade que acabava por fazer com que o amor que eu sentia por ela se transformasse em dor, em remorso, sofrimento.
Um pai se deitando com a própria filha...
Como o destino pôde ser tão cruel comigo?
O grande amor da minha existência ser baseado em uma relação incestuosa...
E, pior ainda, teria Rayka partido por ter descoberto essa verdade sobre nosso parentesco?
Essa hipótese me doía ainda mais, e essa dor que por tanto tempo me consumiu não me deixou perceber algo que era evidente: Rayka também é imortal, ou era...
Sim, de acordo com o pergaminho Rayka tem a mesma condição que eu e meus irmãos e o fato de termos nos encontrado comprovava isso.
Aquele mistério todo que ela fazia em relação ao passado passou então a me fazer sentido, eu agia da mesma forma.
“Helya, és responsável por dar continuidade à Ordem, zele pelo fruto de teu ventre, a menina imortal, originada no nosso ritual mais sagrado e secreto. Ela, com sua beleza e brilho naturais, será a responsável por um dia trazer luz à um mundo obscuro, imerso em sombras.”
Sim, Rayka levava luz por onde passava, com seu olhar, seu sorriso, sua maneira espontânea, alegre e sincera de ser, o pergaminho estava certo, ela era luz.
Mas qual seria seu paradeiro?
Não sei se mesmo sendo imortal ela seria capaz de resistir a um acidente como aquele, mas a verdade é que alguns corpos, dentre eles o dela, jamais foram encontrados.
Isso me deixava desconfiado: teria ela sobrevivido e aproveitado o acidente para desaparecer e seguir pela existência com outra identidade? E por que ela faria isso? Apenas para se afastar de mim ou por algum outro motivo?
Perguntas que após tantos meses permaneciam sem resposta.
Durante todo esse tempo deixei de trabalhar, quando não estava em meu apartamento, sozinho, refletindo sobre todas essas coisas, corria o mundo tentando encontrar alguma pista que pudesse me levar até o paradeiro de Rayka, caso ela tivesse sobrevivido.
Mesmo com toda a dor que nossa relação incestuosa me causava, eu ainda queria encontra-la, afinal, ela é minha filha.
Mas nunca encontrei nada, mesmo acionando meus contatos, nenhum sinal dela.
Reflexões, conjecturas...
Ao contrário de mim que ajo sob as sombras, em uma atividade secreta, mantendo-me anônimo, Rayka era famosa, seu rosto é conhecido em todo o mundo. Seria difícil para ela manter em sigilo sua condição: não envelhecer, morrer.
Burrice, na minha opinião, ela deveria saber que exercer a profissão de modelo era incompatível com a imortalidade, mas quem sou eu para julgar suas decisões?
A verdade é que Rayka, tendo ou não morrido, havia desaparecido e minhas tentativas de encontrá-la foram infrutíferas.
Caso estivesse viva e assim quisesse ela sabia onde me encontrar, mas não o fez.
Aos poucos meu coração foi se acalmando, minha alma foi se tranquilizando e aquela angústia deixou de me consumir.
Há feridas que somente o tempo é capaz de curar, ou ao menos amenizar.
A relação que mantivemos, mesmo condenável, foi fruto do amor que sentimos, sem que jamais cogitássemos a ideia de que pudéssemos ter algum grau de parentesco.
Não tínhamos culpa nenhuma.
Decidi então seguir adiante, fazendo aquilo em que sou mestre: matar e punir.
Se nosso destino for nos reencontrarmos, ou não, que assim seja.
Restou-me apenas aceitar.
Peguei as chaves da minha Harley, levar seu motor ao limite sempre apaziguava meus demônios interiores.
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