17 - Solidão

Erik Wallar

Estávamos prestes a completar dez anos juntos e eu já arquitetava algum plano para fazer com que a data fosse especial.

Há três dias Rayka chegara de uma longa turnê de desfiles e, embora eu tivesse alguns contratos de trabalho pra cumprir, o faria assim que ela viajasse novamente, o que aconteceria em alguns dias.

Mas notei que ela não parecia bem desde que chegara. Rayka já não sorria com tanta facilidade e seus olhos não tinham o mesmo brilho.

Tentei descobrir qual poderia ser o problema, mas ela alegava ser apenas cansaço.

Estranho, ela nunca se queixara disso, deveria ser alguma outra coisa, mas como ela nunca quis me contar deixei de perguntar.

Naquela noite dormimos cedo, desde que chegara não havíamos nos tocado, o que de longe não era comum.

Havia algo estranho, o que poderia ter acontecido?

Teria ela se apaixonado por outro cara?

Se fosse isso ela me diria, cedo ou tarde, e por mais torturante que essa ideia fosse eu preferia afastá-la para evitar um sofrimento antecipado.

Talvez não fosse nada disso e eu estivesse pensando bobagem.

Deveria ser apenas cansaço, eu torcia para que fosse.

Despertei pouco antes do sol raiar, mas ao olhar para a lado vi que Rayka não estava na cama.

Agucei os ouvidos, talvez ela estivesse no banho, mas o apartamento todo estava silencioso.

O que estava acontecendo?

Saltei da cama, confuso, olhei ao redor e vi que a mala de Rayka também tinha sumido.

Aquele estranho pressentimento surgiu novamente...

Fui até a sala e encontrei na mesinha ao lado da porta a chave de Rayka e, debaixo dela, um papel.

“Erik, meu querido, não serei capaz de expressar o quanto você me fez feliz durante todos esses anos em que estivemos juntos, você é e sempre será o grande amor da minha vida, independente de qualquer coisa, mas é chegada a hora de eu seguir sozinha. Não saberei te explicar, agora, talvez o faça algum dia, mas partir é o melhor a fazer. Sei que poderá me encontrar quando quiser, mas peço que não faça isso, pelo amor que sentimos, não faça isso, respeite minha decisão. Siga seu caminho em paz, talvez algum dia voltemos a nos falar, temos muito tempo para isso. Beijos, Ray.”

Não sei por quanto tempo fiquei lá em pé, estático, sem saber o que fazer.

Lágrimas correram pelo meu rosto e um vazio indescritível invadiu minha alma.

Durante toda minha existência foi a primeira vez que aquilo aconteceu: ser abandonado por uma mulher cara ao meu coração por outro motivo que não fosse a morte.

Daquela vez alguém partira por vontade própria e não por imposição da encapuzada.

Voltei para o quarto e me sentei à beira da cama, onde reli o bilhete inúmeras vezes.

Teria sido o Leão? Não, alguns anos já tinham se passado desde aquele lamentável episódio e Rayka jamais o mencionou.

“É chegada a hora de eu seguir sozinha” ela dizia no bilhete.

Enxuguei o rosto, olhei para a cama vazia e cheirei o travesseiro onde há pouco ela se deitara, seu perfume ainda estava nesse.

- Rayka, meu amor... – murmurei.

As lágrimas quiserem brotar novamente, mas consegui me controlar.

Estendi o braço, apanhei meu celular e verifiquei a lista de contatos.

Excluí dois deles e em seguida liguei para um outro.

- O trabalho será executado essa noite. – limitei-me a dizer ao contato.

O Leão estava livre novamente, para azar daqueles que eu caçaria a partir de então.

Não, por maior que pudesse ser minha ânsia por explicações eu respeitaria o pedido de Rayka e não a procuraria, caso ela assim quisesse, sabia como me encontrar.

O espaço vazio que ela deixara em meu espirito seria preenchido pela única coisa que sei fazer: matar a punir.

...

As semanas seguintes foram intensas.

Durante esse período o mundo ficou livre de quase três dezenas de lixos humanos e minha conta tinha engordado bastante.

- O Leão está faminto. – disse um dos meus contatos de “trabalho”.

Não era fome, mas sim ânsia de preencher o vazio deixado por aquela que eu tanto amava.

Isso é o que as pessoas normalmente costumam fazer: mergulhar de cabeça no trabalho, e o meu era matar.

O que eu tinha a fazer a partir de então além de cumprir os trabalhos para os quais eu era contratado? Nada, minha existência se resumia àquilo.

O tempo seguiu, lento e enfadonho, até que certa noite eu estava em um luxuoso hotel na capital italiana. Assistia ao noticiário aguardando as notícias sobre uma “limpeza” que eu havia feito na última madrugada.

Sempre é gratificante ter nosso trabalho reconhecido, ainda que raramente sejam mencionados os reais motivos de terem sido executados.

“Na edição de hoje temos duas tristes notícias que abalaram o mundo artístico”, anunciou o apresentador.

- Duas? Mas eu dei fim a apenas um... – resmunguei.

“Famoso ator de Hollywood, Cid Walsh, foi encontrado morto essa manhã na Praia de La Pelosa, em Stintino. Segundo fontes não oficiais o corpo foi decapitado. A polícia não tem nenhuma pista que possa identificar o autor do bárbaro crime.”

Sorri satisfeito, eu era bom naquilo que fazia.

“Ator de Hollywood” a imprensa dizia, mas ninguém mencionava o fato de o crápula molestar menores de idade. Um velho escroto que se cagou todo quando o confrontei e sequer teve a decência de tentar se defender.

Porém meu sorriso de satisfação logo desapareceu com a manchete que veio em seguida.

“Nos Estados Unidos, há poucas horas, um acidente aéreo causou dezenas de mortes, entre as vítimas estão modelos mundialmente conhecidas que desfilariam em um evento na cidade de Nova Iorque: Milena Shaw, Rayka Porvoon e Ingrid Vitorino. As autoridades investigam as causas do acidente.”

Desabei.

De joelhos fui incapaz de conter as lágrimas que ensoparam o carpete.

Meu amor, Rayka, tinha encontrado o inevitável destino de todo mortal e a partir de então eu estaria completamente sozinho, mais uma vez.

Aquele sorriso que tantas vezes me iluminou havia se apagado e minha alma tornou-se vazia, mais uma vez.

Nenhum comentário: