Assim que o sol surgiu pus-me em pé e, da enorme janela da minha cobertura, vislumbrava a magnificência de seu esplendor.
O que aquilo tudo significava?
Como toda aquela maravilha poderia ter sido criada?
Embora os Senhores da Casa Wallar tivessem suas crenças jamais me apeguei a elas, aos deuses que cultuavam, até mesmo porque nada disso era capaz de explicar o que eu era, minha origem, mas volta e meia refletia sobre a existência de uma força superior.
Tudo o que existe não pode ser uma simples obra do acaso...
Tem que haver uma força tão superior capaz de criar tudo o que existe, até mesmo as coisas ruins, criado até mesmo um ser imortal, como eu.
Quem seria ela, quais seriam seus propósitos, qual o objetivo em ter me criado?
Questões que acredito ninguém ter uma resposta.
Mas aquele não era um dia comum e o suspiro que veio da cama logo atrás de mim resgatou-me de meus pensamentos.
- Bom dia, meu amor. – Rayka, com sua voz manhosa, havia despertado e, enrolada nos lençóis, estendia os braços me chamando.
Aconcheguei-me junto a ela e a beijei.
- Cinco anos... – murmurei.
- Hum... pensei que tivesse esquecido... – ela sorriu.
- Jamais.
Ela deitou em meu peito e ficamos ali, preguiçosos, conversando e relembrando tudo o que já tínhamos vivido.
Cinco anos, bastante tempo, mas continuava apaixonado como na primeira vez em que a vi, naquele restaurante.
Rayka foi a luz que sempre faltou em minha existência e me fez perceber que poderia fazer muito mais do que simplesmente matar e punir, poderia ser realmente feliz, como nunca fora antes.
Ela jamais questionou sobre minhas reais atividades, parecia estar feliz acreditando que eu era um agente secreto, como a princípio, e as coisas estavam bem daquela forma, não havia motivo para muda-las.
Por que ela deveria saber que eu era um mercenário? Que diferença isso faria?
Rayka sempre viajava a trabalho, algumas vezes eu a acompanhava, em outras eu aproveitava para “trabalhar”.
Nossas atividades nos permitiam viajar bastante e conhecer o mundo ao seu lado era a melhor coisa que podia existir.
Era diferente, muito diferente porque eu então viajava por amor, não por morte, como antes.
Viajava para conhecer lugares legais, ver coisas bonitas, e não ir ao encontro da escória.
Manter minhas atividades em segredo às vezes me era desconfortável, mas era o melhor a fazer, ela realmente parecia não se importar.
Mas Rayka também tinha seus mistérios, como toda mulher, por exemplo, ela jamais me disse sua data de aniversário ou comentou algo sobre sua família ou infância, como outras mulheres normalmente fariam.
Na verdade eu também jamais perguntei nada a respeito até mesmo porque eu não teria como falar sobre isso. Mas achava estranho.
O importante é que respeitávamos o espaço um do outro, sem questionamentos, com confiança, carinho. Éramos felizes dessa forma e isso nos bastava.
Ao longo desses cinco anos junto dela percebi que algo em mim havia mudado.
Não sei dizer bem o que, mas parecia que aquela fúria, aquele ímpeto destrutivo que sempre carreguei tinha de certa forma abrandado.
Provavelmente o amor que sentia por Rayka havia domado a fera que carrego dentro de mim, porém um leão sempre permanece alerta para o ataque, caso seja necessário, e muitas vezes ainda era.
Não sei dizer com certeza, mas eu estava diferente, mais paciente, centrado, manso... Difícil explicar, só parecia não ser o mesmo de antes.
Ver Rayka levantar-se e caminhar para seu banho matinal era maravilhoso.
Como ela conseguia manter aquele sorriso logo pela manhã? Sempre brincava com ela por causa disso.
Ao ouvir o barulho da ducha sendo ligada a angústia então, sem aviso, se apossou de mim.
- Um dia isso vai acabar... – murmurei, esfregando o rosto.
Sim, essa era a única certeza que eu tinha: um dia, como todas as outras pessoas que passaram pela minha vida, Rayka morrerá e eu voltarei à minha solidão.
Raramente esses pensamentos surgiam, com minha amada aprendi a “viver o presente, sem me preocupar com o futuro”, mas a ideia de que chegaria o dia em que não mais me maravilharia com seu sorriso era terrível.
Mas esse medo não é comum a todas as pessoas?
Sim, acredito que seja, mas a diferença é que elas nunca sabem quem partirá primeiro, já eu sei que nunca chegará minha vez, apenas verei quem amo partir...
“Viver o presente”, era o que eu fazia, me dedicando a fazer de minha amada a pessoa mais feliz do mundo enquanto estivesse comigo, fosse por um dia ou uma eternidade.
- Rayka, meu amor, terminou? – falei da cama.
- Só estou tirando o creme do cabelo...
Levantei e fui juntar-me a ela no banho.
Cinco anos, Rayka até recusara um trabalho para que pudéssemos estar juntos naquele dia especial, não poderia desapontá-la.
Decidimos tomar café da manhã em uma cafeteria chique não muito longe dali e foi engraçado ver a expressão de espanto das “senhorinhas” que estavam no local quando estacionei com minha Harley-Davidson.
- Calma, minhas queridas, ele tem essa cara, mas é mansinho, não morde não. – Rayka, com seu sorriso e carisma, era irresistível.
Foi legal vê-las sorrindo, logo pela manhã, geralmente as pessoas de mais idade são sisudas.
Mas como eu poderia fazer daquele um dia especial para minha amada?
Rayka e eu costumávamos aproveitar ao máximo o tempo em que estávamos juntos, sem dar margem à rotina, até por viajarmos bastante, então o que poderia surpreendê-la?
Enquanto tomávamos o café fui obrigado a perguntar.
- Meu amor, eu não quero nada especial, tirei folga para estar com você, então qualquer coisa que fizermos me deixará feliz, não se preocupe tá? – e finalizou com um selinho.
- Hum... tem certeza? Não quer fazer nada diferente? – ainda estava desconfiado.
Ela fez uma cara de sapeca e deu um sorriso maroto.
- Sabe... eu ficaria muito feliz se você me deixasse pegar o “Fúria Negra” e colar o ponteiro na Autobhan...
- O “Fúria Negra”?
- Ah, amor, só um pouquinho, faz tempo que você não deixa...
- Poxa, não podemos ir no Mcdonalds ou alguma coisa assim?
Ela gargalhou.
Me fiz de durão, Rayka conhecia bem o ciúme que eu sentia pela minha Lamborghini Murciélago, mas também sabia que jamais recusaria um pedido dela.
Voltamos para o prédio e, ainda na garagem, ela parecia uma menina ganhando um brinquedo novo quando lhe entreguei as chaves da minha máquina.
- Ai amor, eu te amo tanto! – ela pulou no meu pescoço, enchendo-me de beijos.
- Ok, também te amo, mas toma cuidado...
Ver minha amada sorrindo enquanto pisava fundo através da Autobhan não tinha preço, mas confesso que também era gratificante sentir toda a adrenalina daquela situação.
Percorremos muitos quilômetros, almoçamos bobeira, tomamos sorvete, comemos chocolate e, ao final do dia, vimos o pôr do sol à margem do Mar Báltico, sentados no teto do “Fúria”.
À noite jantamos em um modesto restaurante do centro da cidade, mas que servia a melhor lasanha da região, prato preferido de Rayka.
De volta à cobertura fizemos amor como se fosse a primeira e última vez de nossas vidas.
Minha amada estava feliz, eu estava feliz, e só isso importava.
Não me preocupava quantos aniversários mais passaríamos juntos, mas sim que naquele fizemos tudo o que quisemos, como se fosse nosso último dia.
“Viver o presente”, como disse Rayka, meu amor.
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