Chega o final do ano e a maioria das pessoas se alegra com as festas dessa época, Natal, Reveillon, embora não seja assim com todos.
Para mim fica difícil não recordar-me das suntuosas comemorações que eram realizadas em minha longínqua Casa. Não eram festas natalinas, celebrávamos outras coisas, cultuávamos outros deuses, ainda assim eram festas grandiosas que me trazem saudosas lembranças.
Para mim fica difícil não recordar-me das suntuosas comemorações que eram realizadas em minha longínqua Casa. Não eram festas natalinas, celebrávamos outras coisas, cultuávamos outros deuses, ainda assim eram festas grandiosas que me trazem saudosas lembranças.
Porém tudo isso ficou nas sombras do passado.
Ao deixar Wallar elas não mais se repetiram e eu já tinha aprendido, da maneira mais difícil, o quão doloroso é apegar-me àqueles que não podem me acompanhar nessa aparente infindável jornada.
Dei-me conta de que as pessoas entravam na minha vida para cedo ou tarde partirem, restando somente o vazio, e isso fez com que eu deixasse de me apegar, por medo da dor da separação, da tortura da saudade...
Optei por tornar-me solitário.
Pode parecer triste, à primeira vista, mas quantas pessoas não se sentem sozinhas, ainda que em meio a amigos e familiares?
Estar acompanhado infelizmente não significa receber carinho, sentir-se acolhido... então a solidão torna-se relativa.
Sempre tive aquilo que precisei, hoje posso ter tudo o que o dinheiro pode comprar, menos conceder a imortalidade, por mais que assim eu deseje.
As coisas são curiosas, a vida, as pessoas...
Lembro-me de que, ao cogitar adquirir meu carro novo, fui julgado e chamaram-me de egocêntrico, egoísta, pelo simples fato de eu poder comprar algo de alto valor...
O problema não está em ter dinheiro, mas sim no uso que se faz dele.
Julgar... Para algumas pessoas é fácil, conhecendo apenas um lado da história.
Caridade anunciada é autopromoção e não caridade, é o que me vou me limitar a dizer.
Porém quero falar sobre um fato que aconteceu já há alguns anos, mas que me marcou de uma forma especial.
Era noite, véspera de Natal, por aqui não neva e eu caminhava à esmo apenas para respirar.
Gosto da noite, da lua, das estrelas, elas me inspiram à reflexão e me afasta um pouco de pensamentos tristes.
Enquanto caminhava ouvia o burburinho das residências, as músicas, as risadas, por vezes parei defronte à residências para observar a inocente alegria das crianças, então prosseguia, com minha mente distante, em lembranças que não sei dizer quais eram.
Cheguei ao bairro comercial, vazio, escuro, e minha mente mergulhou mais fundo no passado. Foi quando, vindo de um beco, ouvi uma estranha risada e uma conversa.
Abandonei as divagações, agucei a audição e percebi tratar-se de um homem, que aparentemente conversava sozinho. Minha curiosidade aumentar ainda mais.
Caminhei até a entrada do escuro beco e me deparei com algo que tentava ser uma tenda, armada ao lado de uma carroça, e a voz era de um homem que pude ver através da entrada da “construção”.
Ao notar minha presença ele estranhamente mostrou simpatia.
- E aí, irmão, chega mais, tem pra nós dois.
Sem nada pensar ou dizer atendi ao convite, me agachei e o encontrei sentado, ao lado de dois cães.
- Pode entrar, irmão, tá tranquilo, eles não mordem.
Embora simples a tenda estava o mais asseada possível, e aquele homem, mesmo em uma situação tão deplorável, tinha um sorriso desconcertante.
Não estava sujo, mas a farta barba e os dentes mal cuidados denunciavam que ele já devia estar naquela situação há um bom tempo.
Entrei, tomando cuidado para não derrubar a frágil construção, sentei-me ao seu lado e tão logo o fiz uma vasilha cheia de comida me foi estendida.
- Pega aí, irmão, tá limpinho, o portuga me deu antes de fechar o restaurante...
Eu apenas o olhava, sem saber o que dizer.
- Tá com nojo, irmão? – ele então, enfim, me olhou direito – Você não é da rua, irmão, tá perdido por aqui? O que tá pegando?
- Perdido, quem sabe, mas acho que não... – dei um sorriso amarelo.
- Se tá com fome, pode pegá, os bichos já comeram, aqui tem muito só pra mim, pega aí, de boa.
- Agradeço, mas não tenho fome.
- Beleza, mas isso aqui tá bom pra caramba. – ele deu uma garfada e encheu a boca.
Eu apenas o olhava, sem nada dizer, tentando entender o que se passava na mente daquele homem que, em nenhum momento, deixava de sorrir.
- Fala aí irmão, por que tá aqui? Você tá nos pano, podia tá em qualquer lugar, várias gatas, festona e tal, se não tem família...
Dei uma risada.
- É uma longa história, mas prefiro que me diga: por que você está aqui?
- Irmão, quer mesmo saber?
Consenti com a cabeça.
- Irmão, tô nessa tem dois anos, quase três, faz muito tempo não, antes eu era igual qualquer um, manja? Não igual você irmão, tu é grande pra caramba! – nós dois rimos, ele prosseguiu – Tinha família, morava numa casa, cheguei a ter carro e tal, mas do nada a porra toda desandou, saca? – ele encheu a boca de novo.
Eu o observava mastigar, esperando que prosseguisse.
- Então um dia perdi o trampo, a coisa tava braba, não conseguia arrumar mais nada. Quase um ano parado, filhos pequenos, a mulher estressou e quis separar, mandou eu embora, achava que eu tava de má vontade, não entendia, ou não queria entender... – seu olhar ficou triste por um momento, ele pegou um pedaço de carne na vasilha e deu para um dos cães, que tinha um olhar pidão, seu sorriso voltou – Daí eu não tinha pra onde ir, manja? Foi dureza, fui morar com a mãe, depois de uma pá de ano. Não aparecia trampo, a tristeza foi aumentando, saudade dos filho que pararam de ir me ver... Tudo piorava, eu desanimava, comecei a ouvir merda pra caramba, irmão. Um dia ela encheu a cara de cerveja e despejou tudo ne mim, falou umas pá, tipo humilhou memo...
Surgiu então uma garrafa que eu não tinha notado, ele a destampou e me ofereceu, era cachaça.
- Não, agradeço...
- Fala difícil, irmão, “agradeço”... – ele deu uma golada e fez uma careta – Pra onde eu podia ir? Vim pra rua, meio desistindo da porra toda, manja? Tipo entregue memo, queria saber de mais nada... Manja como é, instinto de sobrevivência e pá, não consegui morrer, comecei a me virar, catar papelão, latinha, pra poder comer. Mas depois que tu entra nessa é embaçado pra sair, manja? Acham que sou vagabundo, bandido, ninguém dá trampo, pouca gente ajuda, a maioria finge que não existo, a vida vai ficando cada vez mais difícil...
Ele então parou de falar e o sorriso amigável desapareceu, seus olhos estavam marejados.
- Meu amigo, eu já entendi... – coloquei a mão em seu ombro.
- Não pô, você queria saber, vou falar... – ele respirou fundo, engolindo o choro – Chegou uma hora que comecei a sentir vergonha de mim, do que virei, de ver que não tenho mais saída, que essa agora vai ser minha vida. Uma vida filha da puta, irmão, e o que eu fiz? Pra aguentar essa porra toda comecei a beber, pra entorpecer a mente, distrair a cabeça, fugir dessa realidade escrota. Mas aí me afundei mais. O povo me vê com a garrafa e acha que tô na rua por ser um bêbado, mas não é, eu virei bêbado por ter que tá na rua, manja? Foi o contrário, só dá pra aguentar isso de cara cheia... – as lágrimas começaram a correr.
Meu coração apertou, como há muito não acontecia.
Até então ele estava ali, sorrindo, e eu o fiz chorar, o fiz contar sua história triste...
Estendi a mão em direção à garrafa, que me foi entregue sem que ele me olhasse.
Tomei uma golada, naquele momento eu estava precisando.
Ficamos então em silêncio, cada qual mergulhado em um oceano de lembranças tristes e dolorosas.
Não havia dor maior ou menor, apenas dor, eu com a minha, ele com a dele. Apenas quem sente é capaz de mensurar, inútil explicar.
Passaram-se mais alguns instantes, em silêncio tomamos mais uns goles.
- Tem alguma coisa que eu possa fazer pra ajudar? – perguntei, titubeante, temendo ofendê-lo.
Foi quando o sorriso mais uma vez surgiu naquele homem, que amigavelmente pôs a mão no meu ombro.
- Já tá fazendo, irmão. Você tá aqui comigo, podia tá em qualquer lugar, mas tá aqui comigo...
Passamos várias horas conversando, naquele lugar que você pode considerar o mais improvável em que eu pudesse estar.
Mas ali, naquela tenda em um beco esquecido, eu era bem-vindo, fui bem acolhido, e aquele homem não se importava com quem eu era, com o que eu tinha ou fazia, para ele o importante era apenas o fato de eu estar ali...
Foi uma noite feliz.
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