28 - Sangue Imortal

Erik Wallar

Em um passado distante...

Eu, Rijkaard e Waldrun, os três irmãos imortais, seguíamos rumo à vila de Karlstad, ao Sul, sob ordens do nosso Senhor.

O final do inverno geralmente enche o coração das pessoas de alegria e esperança, mas não foi o que aconteceu naquela vila. Seus moradores estavam sendo assombrados pelo estranho desaparecimento de pessoas e a situação piorou ainda mais quando, ao investigarem, as autoridades locais encontraram diversos corpos dilacerados no interior de uma floresta próxima.

Seu governador, Walther, não encontrando uma solução para os crimes decidiu consultar a renomada feiticeira de uma vila vizinha, Kenya, que lhe revelou quem era o autor das mortes: uma criatura chamada Huldrekall.

Nosso Senhor não acreditou na história que lhe foi contada, assim como nós, afinal os Huldrekall eram criaturas mitológicas cuja existência nunca foi comprovada, mas não custava nada enviar ajuda, ao menos para confortar a população.

Criatura mítica ou não, nossa missão era levar paz ao povo de Karlstad.

Fomos recebidos com festa, o olhar de esperança das pessoas era emocionante e entendemos que nossa simples presença já lhes confortava o coração.

Assim que chegamos, ao final da tarde, Walther se reuniu conosco e explicou os pormenores do caso, agradeceu nossa ajuda e designou o capitão da guarda, Ektor, para que nos desse apoio.

- Senhores de Wallar, o mais aterrador disso tudo é o fato de as pessoas serem levadas até a floresta para serem mortas. Elas simplesmente desaparecem de suas casas e lá são encontradas, em um estado deplorável.

- Exatamente, ninguém ouve nada, nenhum rastro é deixado, o autor das mortes não pode ser uma criatura comum.

Eu e meus irmãos nos entreolhávamos, ainda desconfiados daquelas histórias. Inúmeras lendas acerca de criaturas como o Huldrekall existiam, mas em mais de cem anos de existência jamais nos deparamos com algo do tipo.

Naquela mesma noite, após a refeição, Ektor já nos guiava até o local onde a maioria dos corpos foi encontrada.

- Realmente acreditas na história do Huldrekall? – indaguei ao capitão, enquanto cavalgávamos.

- Nunca acreditei nessas lendas, grande Erik, porém não nos restou outra alternativa. Os corpos já foram sepultados, caso contrário, lhes mostraria. Pareciam mastigados, algo realmente horrível. E como poderiam as pessoas serem retiradas de suas casas sem que nenhum rastro fosse encontrado?

- É realmente estranho, isso afasta a hipótese de terem sido obra de um animal selvagem.

- Perdoe-me, mas acho que sei reconhecer o ataque desses animais. E não, não foram obra de lobos ou de um urso. Os corpos não estavam comidos, mordidos ou arranhados, mas sim mastigados, estripados, nunca vi nada parecido antes.

- Entendes que para nós é difícil crer na existência de uma criatura assim? – Waldrun se pronunciou.

- Entendo perfeitamente, eu também não acreditaria se não tivesse visto. Mas, se me permite a ousadia, também é difícil crer que vocês sejam imortais. Assim como o Huldrekall, a existência de guerreiros imortais também é uma lenda.

- Fiques tranquilo, sabemos que é difícil crer em nossa fama e não nos preocupamos com o que acreditam ou não, somos o que somos, assim como quem convive conosco sabe, então se creem ou não é irrelevante. – Waldrun se irritou com a afirmação.

- Até mesmo porque um Huldrekall não pode ser derrotado por humanos comuns, se o fossemos, não estaríamos aqui. – Rijkaard completou.

Instantes de silêncio se seguiram até que, adiante, avistamos a floresta, escura e silenciosa.

- Meus guardas se recusam a aproximarem-se daqui, principalmente agora, após a história da criatura. Na última noite um rapaz desapareceu, ele dormia no quarto ao lado dos pais, eu o conhecia. – Ektor fez uma pausa, solene – É provável que seu corpo esteja no floresta, mas ninguém teve coragem de vir investigar.

- É compreensível, afinal, sendo meros humanos como você, o que poderiam fazer?

- Waldrun, meu irmão, peço que pare. – o repreendi.

O silêncio que se seguiu era quebrado somente pela respiração dos nossos cavalos, porém ele não continuou por muito tempo, um tétrico grito feminino anunciou que chegara o momento de agirmos.

Sem nada dizermos disparamos para o interior da floresta.

O grito se repetiu, repleto de dor e desespero, mais próximo, e a essa altura meu machado já estava em uma das mãos.

Chegamos até uma clareira em meio às árvores e estranhamente os cavalos empacaram, assustados. Cavalos acostumados à batalha, aquilo não foi um bom sinal, havia algo diferente naquela situação.

Seria a lenda verdadeira? Decidimos seguir a pé.

Logo adiante encontramos algo que me é difícil descrever: tinha quase três metros de altura, sua pele era amarronzada, possuía enormes garras e dentes, além de chifres brotando-lhe dos lados da cabeça. Não se parecia com nada que eu já tivesse visto, mas era verdade, o Huldrekall realmente existia!

A criatura sequer se importou com nossa chegada, permaneceu com a boca agarrada a um dos braços da mulher, descarnando-o lentamente.

A pobre urrava de dor, já quase desfalecendo, era hora de pôr um fim àquilo!

- Fique aqui atrás... – Waldrun ordenou à Ektor, que obedeceu prontamente.

O Huldrekall só nos deu atenção quando sentiu a lâmina do meu machado e das espadas de meus irmãos atingindo suas costas, voltando-se para nós e deixando de lado sua vítima.

Ele sangrava, poderia então ser morto?

Uma batalha feroz se iniciou onde garras e lâminas se chocavam violentamente fazendo com que o silêncio da clareira cedesse lugar a urros humanos e grunhidos bestiais.

Por diversas vezes meu machado foi cravado no corpo da criatura sem que ela cedesse.

Não sei dizer por quanto tempo o embate se estendeu, mas o cansaço já começava a tomar conta de nós, mesmo acostumados a intensas batalhas.

Uma coisa era certa: aquela besta não era uma criatura comum. Os ferimentos que nela infligíamos pareciam cicatrizar rapidamente e por um breve momento acreditei que não poderíamos derrota-la.

- Matem a besta, matem a besta! – Ektor se limitava a gritar, sem juntar-se à batalha.

Aquilo me irritava, mesmo que ele estivesse obedecendo à ordem de meu irmão um verdadeiro guerreiro jamais se manteria impassível diante do que acontecia!

De repente ouvi Rijkaard gritar de dor, algo que nunca tinha ouvido até então. Com as enormes garras a fera tinha atingido suas costas, fazendo-o cair no chão frio.

Eu e Waldrun atacamos com uma fúria ainda maior, mas repentinamente fomos atirados longe com um único golpe e Rijkaard ficou à sua mercê, impotente, ferido.

Minha mente foi então inundada por pensamentos desesperadores: talvez um humano imortal pudesse encontrar seu fim pela fúria de uma criatura não humana como aquela?

“O Huldrekall só pode ser derrotado por um imortal.” Era o que diziam, mas seria verdade?

Nossas lâminas pareciam ser impotentes contra ele...

Horrorizado vi a fera abocanhando meu irmão, levantando-o por um dos braços, vitoriosa.

Rijkaard se debatia e gritava de dor, golpeando a fera com a espada, mas ela parecia não se abalar e permanecia segurando-o.

Quando o fim do meu irmão parecia certo o mais inesperado aconteceu: assim que a fera sentiu o sangue de Rijkaard escorrer pela sua garganta ela emitiu um longo urrou e o libertou.

Waldrun e eu nos olhamos espantados, estranhamente uma fumaça começou a sair da boca da besta enquanto ela se contorcia em meio à guinchos. Ela parecia queimar.

- O sangue! Imortais, o sangue de vocês irá destruir o Huldrekall! – gritou Ektor, atrás de nós.

Enfim ele teve alguma serventia naquilo tudo.

Rijkaard, cambaleante, com o braço muito ferido, veio para junto de nós.

- Irmão, estás bem? – indaguei, amparando-o.

- Melhor impossível... – ele sorriu, sarcástico – Ektor tem razão, o que pode matar esse maldito é nosso sangue, veja...

O Huldrekall, desesperado, se contorcia, mas ainda não parecia ser seu fim.

- Pois que assim seja! – Waldrun, com a espada, fez um corte no próprio braço e correu até a criatura. Ele não a golpeou, mas sim esfregou seu braço sangrando em suas costas e no mesmo instante em que o sangue a tocou uma fumaça fétida brotou do local.

- É o sangue! É o sangue! – Ektor gritava.

O Huldrekall enfim parecia sentir alguma dor, se debatendo desesperado, tentando impedir que meu irmão o atingisse novamente com o braço ferido.

Tirei um punhal da cintura, fiz cortes em ambos os braços, e a exemplo do meu irmão, lancei-me sobre a besta.

Meu machado tinha sido deixado de lado, minha arma passara a ser meu próprio sangue.

- Faça-o beber o sangue! – gritava Ektor, de forma sábia, mas ainda irritante.

Aproximei-me por trás do Huldrekall e com um forte chute nas pernas derrubei-o no chão.

- Segure-o Waldrun! – gritei.

Meu irmão agarrou-o pelo pescoço, ainda no chão, aplicando-lhe um mata-leão, impedindo-o de se levantar e eu pude enfim aproximar-me de sua boca. Com uma das mãos a mantive aberta enquanto do outro braço meu sangue escorria por sua garganta.

O cheiro que a fera exalava era asqueroso e foi difícil manter-me naquela posição e assim que Waldrun a soltou nos afastamos, enojados.

- A cabeça, cortem a cabeça! – Ektor gritou.
Olhei para Waldrun, que, ofegante, fez um aceno positivo.

Fui até meu machado, apanhei-o e corri na direção do Huldrekall, que se contorcia desesperadamente.

Com um único golpe sua cabeça separou-se do corpo, rolando pelo chão. Os guinchos e urros então cessaram e seu corpo tombou pesadamente.

Repentinamente todo o local foi tomado por aquela fumaça pútrida e em instantes o único vestígio que restou daquela criatura foi uma gosma repulsiva no chão.

Lembrei-me da mulher ferida, aproximei-me dela e vi que estava apenas inconsciente, mas precisava de cuidados médicos o quanto antes.

- Busque os cavalos! – Waldrun ordenou à Ektor, que saiu correndo, ainda assustado.

Nos reunimos próximo à mulher desfalecida, que inspirava cuidados.

- Meus irmãos, a lenda era mesma verdadeira... – Rijkaard sorriu para nós.

- Sim, irmão, assim como a nossa. – concordei.

- Agora esse porra desse Ektor jamais duvidará disso. – a frase de Waldrun fez com que ríssemos.

- Existirão mais?

- Não sei te dizer, Rijkaard, mas se existirem, já sabemos como nos livrarmos deles.

Logo Ektor retornou trazendo nossas montarias e pôs a mulher em sua garupa.

- Ainda mal posso acreditar no que presenciei essa noite... – ele confessou, com um sorriso meio maravilhado no rosto.

- Obrigado por sua ajuda, ela foi fundamental. Talvez se não fosse você não saberíamos o que fazer. – agradeci.

- Sim, agradecemos, Ektor, mas acredito que seja melhor manter-se em silêncio no caminho de volta. Seus gritos... sinto-me tentado a cortar-lhe fora a língua... – sugeriu Waldrun.

Novamente rimos, satisfeitos por termos posto um fim àquela criatura, concluído nossa missão, correspondido à confiança que nos foi depositada e menos céticos em relação às incontáveis lendas que correm os quatro cantos do mundo.

O universo é repleto de coisas que sequer podemos imaginar, inacreditáveis, e naquela noite tivemos uma prova disso.

Nós, os imortais, somos uma prova disso.

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